Há muitos anos atrás, vivia em S. Brás de Alportel um almocreve chamado José Coimbra. Certo dia, no desempenho da sua profissão, dirigia-se para Faro, quando no sitio de Milreu, distante de Estói uns duzentos metros, lhe apareceu subitamente uma formosa moura, vestida de azul e de cabelos soltos e macios. Também seus olhos eram azuis lindos, como o céu do Algarve em certos dias de luz.
José Coimbra ficou tão surpreendido que não conseguia articular palavra. E lá do fundo da memóriasubiu-lhe a lembrança do que seus pais contavam sobre o lugar e ele nunca quisera acreditar: que naquele ponto aparecia uma moura encantada a quem por ali passasse solitário.
A moura era tão linda e tão suave nos gestos que o almocreve nem se lembrou de ter medo, só de ficar surpreso. Por isso, quando ela o convidou a acompanhá-la, José Coimbra aceitou o convite sem se dar conta do que dizia. Caminharam em silêncio uns poucos metros, até que, a certa altura, a moura bateu com o pé no solo por três vezes, acompanhando este movimento com uma levíssima pancada sua vara mágica. Abriu-se então uma porta pela qual entraram, descendo em seguida uma escadaria de mármore que parecia não ter fim. E quando chegaram ao final da escada, José Coimbra abriu a boca de puro espanto, porque desembocara numa sala enorme, de paredes e colunas de ouro maciço.
Pasmado com aquela imensa riqueza, o almocreve retomava pouco a pouco o estado de espírito, quando de súbito, viu acorrentados um leão e uma serpente. Assustadíssimo, como não sabia o que o esperava, decidiu aguardar para ver o que se seguiria, até porque se sentia incapaz de dar um passo.
Então a moura disse-lhe:
-- Se quiseres trocar essa vida de trabalhos e miséria pela de sossego e riqueza, e possuir este palácio, em que o ouro que vês é o que menos valor tem, só de ti depende.
Os olhos brilharam-lhe de cobiça, mas, sem os desviar dos bichos, perguntou:
-- O que devo fazer?
Fingindo que não via nem ouvia o almocreve, a moura continuou como se não tivesse sido interrompida:
--Imponho-te, porém, três condições: seres três vezes engolido e três vezes vomitado pelo meu irmão; três vezes abraçado pela minha irmã, ficando o teu corpo com feridas nos sítios onde ela te tocar ; e , depois disto, consentires que eu te beije na testa tirando-te os santos óleos que recebeste no baptismo.
José Coimbra, aparentando um sossego que estava longe de sentir, perguntou apenas onde estavam os tais irmãos. E a moura, voltando-se para o canto da sala onde estavam os animais acorrentados, respondeu-lhe que o irmão era o leão e a irmã a serpente.
Interiormente o almocreve estava em pânico, mas, desejando não mostrar o pavor que o tomava, pretextou ir pensar maduramente no assunto, pelo que, em breve, ali voltaria com a resposta. A moura dos olhos azuis não mostrou qualquer contrariedade com a evasiva do homem e disse-lhe até que levasse já consigo duas barras de ouro.
O almocreve aceitou a oferta, despediu-se da moura, que o acompanhou até á porta, e partiu para casa, disposto a não contar nada a ninguém, nem mesmo á mulher.
Ao chegar a casa, escondeu as barras de ouro num local onde a mulher nunca as achasse e calou-se muito bem calado sobre o estranho sucesso, convencendo-se intimamente a nunca mais tornar ao palácio subterrâneo e encantado moura de Estói. Mas passado tempo, começou a ter um pesadelo que todas as noites o visitava e do qual era acordado pela mulher, tais os gritos aflitivos que dava. Sonhava que era engolido e vomitado pelo leão, abraçado pela serpente e beijado pela moura. A frequência deste sonho era tal que se habituaram ambos ao ritual nocturno, e meses depois já nem a mulher se aborrecia de acordar com gritos, nem José Coimbra tinha tanto pavor como antes.
Passaram anos e José Coimbra começou a ressentir-se, como toda a população algarvia, das longas estiagens que estavam arruinando os campos e empobrecendo as gentes. O seu negócio foi decaindo e a fome começou a bater-lhe fortemente á porta do estômago.
Foi então que se lembrou das barras de ouro que escondera quando voltara da sua aventura.
Pensou ir à feira de Vila Viçosa vende-las, esperando que aí lhe dessem por elas um mais justo valor. Mas -- coisa estranha! -- à medida que ia acalentando esta ideia, ia deixando de ver, até que ficou completamente cego. Com isto, piorou muito a situação económica do pobre do almocreve, que não teve mais remédio senão começar uma longa romaria de medico em medico, em busca de cura para o seu mal.
Os médicos não o curaram e decidiu então ir ao barbeiro, que completou a desgraça, agravando o mal. Por essa altura, soube que haviam chegado a Faro dois novos médicos que tinham estado no estrangeiro. Como os homens trouxessem atrás deles um rasto de fama, pensou que valia a pena tentar saber se o seu mal era incurável como parecia, ou se ainda havia alguma hipótese de cura.
A mulher montou-o numa burrica, e com ela á frente, puxando pela arreata da jumenta, lá partiram a caminho de Faro.
Passando pelo sitio de Milreu, param para descansar. A mulher pediu-lhe que aguardasse um momento e foi até uma casa próxima pedir um pouco de agua fresca. Entretanto, José Coimbra desmontou e saiu da estrada, tacteando á procura de uma sombra. De repente, ouviu uma voz que imediatamente reconheceu ser a da moura perguntando-lhe, zangada, porque faltara á palavra dada.
-- Por isso -- dizia ela -- estás cego! E se te poupei a vida foi porque não divulgaste o segredo e o dos meus irmãos!
Mal ouviu falar naqueles irmãos, o pobre do almocreve, sem forças para falar, começou a tremer convulsivamente. A moura apiedou-se então do homem e, abrandando o tom, disse-lhe quase carinhosa:
-- Não vás a Faro, volta para casa! Amanhã, antes de o sol nascer, senta-te á soleira da tua porta, porque no momento do nascer do sol os teus olhos darão dois estalos como amêndoas duras e então começaras a ver. Primeiro avistarás a casa do padre José Dias, depois os canários que ele tem na gaiola e por fim, verás as casas da povoação e os campos em volta.
O almocreve sentiu um alivio inesperado, era com se tivesse rejuvenescido. Chamou a mulher e disse-lhe que já não queria ir a Faro. Ela admirada com aquela súbita mudança de ideias, acabou por aceder quando José Coimbra lhe atirou com o supremo argumento: para quê gastar as ultimas moedas que tinham numa cura mais do que improvável! E voltaram para casa.
No dia seguinte, ainda era escuro na rua, o José Coimbra pediu á mulher que o pusesse á porta de casa. Esta, muito estranhada com tanta atitude inesperada por parte do marido, ia ia para discutir o pedido quando ele lhe deu as suas razões:
-- Ó mulher, pois então não posso ouvir os canários do padre, cumprimentarem a manhã?! Nem sentir o cheiro bom da terra orvalhada?!
Sem mais réplica, a mulher sentou-o no poial e foi varrer para dentro.
Mal o sol nasceu e deu nos olhos do cego, ouviram-se dois estalos tão fortes que a mulher, pensando que o almocreve andava á cacetada com a bengala nos degraus ia a dizer-lhe, lá de dentro, que tivesse cuidado com o que fazia, quando ouviu um grito de alegria:
-- Vem cá depressa, mulher, vem que eu já vejo! Vejo o sol, a casa do padre José e a gaiola dos canários!...
Abraçaram-se cheios de alegria e penso que devem ter terminado em paz as suas vidas, porque a lenda não diz se o almocreve tornou alguma outra vez ás ruínas de Milreu.
Corre contudo na região, que em Milreu ainda hoje aparece a mourinha infeliz, tentando sempre, junto dos viajantes solitários, o seu desencantamento e dos seus irmãos.
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