segunda-feira, 13 de outubro de 2014

A cal vai passar a ser produto turístico no barrocal algarvio

O último forno de cal deixou de trabalhar no Algarve há mais de meio século. A tradição pode vir agora a ser retomada, pela mão dos espanhóis, com a ajuda de uma ONG sedeada no Reino Unido.


As cores e os cheiros da cal – que nem sempre é branca – vão conduzir os turistas à descoberta do barrocal. Um geólogo e uma historiadora pretendem mostrar aos turistas como era no Algarve no tempo em que as casas não se pintavam com tinta e pela janela entrava o cheiro a alecrim e rosmaninho. A proposta, de vertente cultural e empresarial, despertou o interesse da organização internacional Lead – Inspiring Leaders for a Sustainable World.

À entrada da serra do Caldeirão, uma curva apertada convida a abrandar a marcha. Susana Calado sugere fazer um pequeno desvio para visitar um forno de cal, ainda intacto. A viagem é feita de automóvel, mas o que propõe é abandonar a viatura. “Pode-se chegar aqui vindo pela Via Algarviana, desce-se a calçadinha medieval, em Querença, sobe-se o cerro, estamos no Porto Nobre.” Assim, de forma resumida, está apresentado um dos percursos pedestres da rota da cal e do barro, à semelhança do projecto de Morón (Sevilha). No Algarve, a última pedra de cal artesanal deixou de se produzir há mais de meio século.

A jovem, que fez uma tese de mestrado sobre a produção artesanal de cal, pretende dar a conhecer e valorizar esta matéria-prima enquanto produto cultural e turístico. “Esta pedra aqui não parece branca, mas vai dar cal branca.” Então, a cal não é toda branca? “Não, essa é outra história”, observa. O colega do projecto, Bruno Rodrigues, geólogo, complementa, explicando como é que as casas caiadas surgem, por vezes, com barras de azul, ocre e verde. “As cores derivam dos minerais, cujos pigmentos se juntam à cal e lhe dão a coloração.” A arquitectura tradicional do Algarve e Alentejo conserva ainda alguns exemplos da pré-época da massificação industrial das tintas. 


Cal algarvia feita por espanhóis

Quando chegou à aldeia, no princípio do Verão, Susana Calado, perguntou onde poderia encontrar fornos de cal. “O quê, a menina está doida?”, exclamou a mulher que encontrou sob um sol abrasador. “Desapareceu tudo, dava muito trabalho, e os que sabiam trabalhar nisso já morreram.” Não se deu por vencida. Ao fim de dois meses de andar a calcorrear montes e vales, descobriu mais de uma dezena de exemplares, só na zona de Querença. “Afinal valeu a pena”, pensou. Agora, quando se cruza com as pessoas da terra, fica satisfeita quando lhe dizem: “Então, quando é que vamos caiar?”

Por enquanto, a pergunta é ainda encarada quase como uma brincadeira, mas o assunto está a ser levado a sério, do ponto vista académico e empresarial. Por isso, no dia 1 de Novembro realiza-se em Querença um seminário, envolvendo investigadores de três universidades, no qual se vai debater as utilizações da cal e dos pigmentos das terras argilosas do barrocal algarvio, elementos de suporte na construção sustentável.

No entanto, o retomar desta actividade tradicional esbarra nalgumas dificuldades. Os mestres caleiros desapareceram e uma grande parte do conhecimento prático ficou perdida na poeira das memórias. Do outro lado da fronteira, em Morón de Frontera (Sevilha), a tradição foi retomada, com êxito, e pode estender-se a Portugal. “Estamos a procurar estabelecer uma parceria com o Museu da Cal de Morón para vir cá um mestre caleiro dar formação”, diz Susana Calado, adiantando que Manuel Gil Ortiz da Associação Fornos de Cal de Morón é um dos convidados do encontro A Cal e o Barro como Produtos Culturais e Turísticos, a decorrer no primeiro fim-de-semana do próximo mês, no auditório da Fundação Manuel Viegas Guerreiro, em Querença.

Mas, na semana passada, já oito elementos da Lead, uma organização internacional especializada na captação de futuros líderes para a temática da sustentabilidade, estiveram no terreno a estudar o Projecto Querença – uma iniciativa que surgiu, há dois anos, fruto de uma parceria entre a Universidade do Algarve e a Fundação Manuel Viegas Guerreiro destinada a ajudar a travar a desertificação do mundo rural. Aí se insere este projecto da cal.


Arejar ideias, com as botas na lama

Hugo Matias, argentino, acaba de chegar de um passeio à ribeira da Benémola, integrado na equipa da Lead, sedeada no Reino Unido. O percurso, com uns pingos de chuva pelo meio, serviu para arejar ideias. Após uma manhã de trabalho, em espaço fechado, decidiram meter as botas na lama. Durante uma hora, o grupo andou, cada qual por seu lado, a caminhar pelos trilhos do vale rochoso, a reflectir sobre o que fazer para que as aldeias portuguesas tenham futuro.

“Temos muitas perguntas sem resposta”, disse ao PÚBLICO. Hugo Matias, formado na área dos recursos humanos, destacou a importância da “energia do sítio”, onde a natureza se apresenta em estado puro. O que estes líderes, com diferentes formações académicas, pretendem fazer é um diagnóstico, “baseado na experiência directa”, sobre os problemas locais. “Vamos produzir um documento, com algumas recomendações”, afirmou, adiantando que a situação que se verifica no Algarve e um pouco por todo o país exige uma “abordagem multidisciplinar”, casando os conhecimentos académicos com a intervenção no território. Da equipa este elemento foi o único que conhecera o Projecto Querença, quando esteve em Portugal há dois anos, ao serviço da Lead.

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